segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Os "Rubis" das Chagas dos Cristos


A produção de imagens sacras em madeira policromada teve grande importância no paríodo colonial brasileiro, em especial durante o chamado barroco mineiro. Mestres e oficiais criaram grandes números de  obras de arte, que hoje constituem patrimônio inestimável. Dentro desse acervo destacam-se as representações de Jesus Cristo, esculturas que revelam bastante expressividade em diversas iconografias, como os Cristos crucificados, as imagens do Senhor dos Passos, as de Nossa Senhora da Piedade e Outras. Tais imagens estão presentes em oratórios, residências, capelas e altares das igrejas, e existem inclusive esculturas articuladas, que podem mudar de postura, utilizadas em procissões na Semana Santa.
Algumas das técnicas empregadas pelos artistas e artesãos na criação destas imagens podem revelar, ainda hoje, importantes informações sobre a arte e a ciência da época.
É o que acontece com as gotículas de material vermelho brilhante e semitransparente, conhecidas como os "rubis" das chagas de Cristo, presentes em esculturas no período barroco em Minas Gerais (séculos XVIII e XIX). Tais gotículas imitam o sangue das feridas dos Cristos e eram produzidas pelos fabricantes de tintas.
Estudos realizados sobre essas esculturas, no Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Cecor), da Universidade Federal de Minas Gerais, mostram que os artistas do interior do Brasil conheciam as técnicas avançadas da época. Pesquisar a tecnologia da obra de arte – uma das linhas e atuação do Cecor – significa aprofundar o conhecimento sobre a imaginária de Minas Gerais.
Para estudar as diversas camadas de tintas, vernizes e outros materiais aplicados sobre o suporte em madeira, microamostras com alguns milímetros quadrados são removidas em locais discretos da peça, preferencialmente em áreas de perda de policromia. Tais amostras são submetidas a uma série de análises físico-químicas, identificando-se a composição dos materiais usados. Os "escorridos" e os pingos de sangue são feitos sobre a carnação dos cristos, policromia que imita a pele, geralmente executada com técnica a óleo e pigmentos conhecidos como  "branco de chumbo" e "vermelhão", de acordo com a descrição dos manuais de artes e ofícios do século XVIII.
Na constituição da tinta, o aglutinante, ou seja, o elemento responsável pela união dos pigmentos para formar uma camada, definia a técnica da pintura. Na pintura a óleo o aglutinante empregado era um óleo secativo : óleo de linhaça ou de nozes. Na têmpera, existiam vários tipos : têmpera a cola (cola animal), têmpera a ovo (ovo inteiro, clara ou gema de ovo) e outros. As carnações rosadas eram feitas superpondo-se camadas coloridas sobre uma "preparação" branca. Tal camada preparatória, uma mistura de carga (gesso ou carbonato de cálcio) e cola animal, tinha a finalidade de preparar a madeira e delinear as formas da escultura. O policromador aplicava, geralmente, uma película de cola sobre esta camada branca para deixá-la menos absorvente, antes de aplicar as tintas coloridas. A madeira também era protegida e impermeabilizada por uma camada de cola, a que chamavam de encolagem.
As representações de pingos de sangue foram estudadas por microscopia eletrônica com detetor de energia dispersiva de raios X (EDS), em cerca de dez Cristos dos séculos XVIII e XIX, pertencentes a igrejas e museus das cidades históricas de Minas Gerais. As imagens examinadas incluem desde crucifixos de pequeno porte até peças em tamanho natural, como o Senhor Bom Jesus dos Matosinhos (da cidade de Santo Antônio do Pirapetinga, próxima a Ouro Preto) e o Cristo Crucificado (do altar-mor da igreja de São Francisco de Assis, em Mariana), ambas atribuídas à escola do mestre Piranga, importante escultor da época; além do Senhor dos Passos e o Cristo Morto (da Igreja de Santo Antônio, em Santa Bárbara).
Essa técnica de análise, realizada na Escola de Engenharia da UFMG, Permite a localização e determinação dos elementos químicos presentes na amostra. Em todas as obras, as gotículas vermelhas apresentam enxofre (S) e arsênio (As) em sua composição, elementos químicos característicos de um mineral conhecido como ouro-pigmento, por sua cor natural amarelo-ouro. Uma receita da época explica em detalhes a fabricação dos pingos de sangue, citando o uso deste mineral. Quando aquecido em tubo de vidro fechado, o ouro-pigmento, ao sublimar (passar diretamente da fase sólida para a gasosa) e, em seguida, resfriar, adquire uma coloração vermelha com brilho resinoso.
Na tradição oral e mesmo descrições de revistas de arte, tais gotas s           ão chamadas de "rubis" ou "resina vermelha" pelos estudiosos ou apreciadores da arte barroca, mas na verdade as características físico-químicas do material não se aproximam daquelas da pedra preciosa da qual tirou o nome e muito menos das de uma resina. Confirmando o realismo e a dramaticidade do barroco, esses pingos de sangue são encontrados em tamanhos variados, colados sobre a carnação das esculturas.
Carlos Del Negro, escritor e pesquisador da arte e arquitetura mineira do período colonial, dá também ao material das gotas de sangue o nome de "ialde queimado". Segundo esse autor, "o ialde amarelo, ouro pimenta (As2S3), de cor amarela viva, peso específico 3,46, aquecido funde facilmente em líquido vermelho (ponto de fusão 300°); pelo esfriamento solidifica-se em massa vermelha de densidade 2,76 (sic)". Del Negro revela ainda que o material trazido da Europa, está citado em documento de 1801 e foi utilizado pelo mestre da pintura Manuel da Costa Ataíde (1762-1830) na Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto.
A identificação – através de métodos e técnicas avançadas – de materiais pictóricos antigos, relacionando-os com o seu contexto histórico, permite compreender melhor a origem p, a fabricação e a aplicação desses materiais, fornecendo informações sobre sua evolução e estabilidade. No caso dos "rubis" das chagas dos Cristos, a pesquisa confirmou ainda que os mestres artistas do barroco mineiro conheciam os ofícios das artes européias. Tais subsídios são importantes para historiadores, restauradores e pesquisadores da arte barroca, ajudando a decifrar os mistérios das obras de arte do nosso rico patrimônio histórico.
* Claudina Maria Dutra Moresi
Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, Universidade Federal de Minas Gerais

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